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  • Maria Clara Araújo

DIVERGÊNCIA CULTURAL

Atualizado: 10 de abr. de 2023

ETOARE, JEBUS E KUIMARE: DE MITO A CULTURA WARAO


Foto: Arthur Vieira

Em uma série documental produzida pelo Sesc de São Paulo, sobre a Cultura imaterial do povo Warao, a Argenia Centeno, artesã e liderança Warao em Boa Vista, conta sobre Etoare, amigo de Auralá, e o primeiro Warao a pisar na terra. Segundo Argenia, no início não havia um único Warao na Terra. Apenas animais e plantas. Todos os ancestrais Warao viveram em algum lugar do céu, no Kuimare, o mar de cima, onde se tornaram eternos.


Dizem que o primeiro ancestral Warao se chamava Auralá, e era o chefe do povo que morava lá em cima. Auralá tinha um amigo chamado Etoare, também conhecido como “braço forte”, por sua habilidade excepcional como o arco e flecha. Um dia, quando Etoare visitou Auralá, o chefe falou sobre as dificuldades que o povo estava enfrentando sem ter o que comer, devido à escassez de peixes e frutos.


Enquanto os dois amigos pensavam em soluções, um pássaro pousou em um tronco próximo. Naquele momento, Auralá pediu para Etoare acertar o pássaro para terem o que comer, e de imediato, o Warao, armou o arco com uma flecha e atirou, mas a flecha foi parar em uma área cultivada. Em seguida, Etoare atirou mais uma flecha e novamente sem sucesso. O pássaro voou para longe, e então Etoare foi buscar as suas flechas.

Ilustração Sesc/SP e Acnur

A segunda flecha não caiu muito distante da primeira, no entanto ao tentar puxá-la, o objeto se enfiou mais ainda no solo. Etoare tentou mais uma vez, dessa vez com tanta força que não só a flecha, como as mãos dele foram enfiadas no solo. Quando ele conseguiu tirar os braços, viu um buraco se abrir como se fosse um portal. Através do buraco ele viu outro mundo lá embaixo, repleto de árvores, plantas e animais. O abençoado Orinoco.


Curioso, Etoare pediu a Auralá sua rede para fazer uma corda e ir recuperar a sua flecha. Ao retornar ao buraco, Etoare percebeu que ele estava maior, então amarrou a corda em um tronco de árvore, e aos poucos foi descendo por um lindo céu azul, onde voavam pássaros que ele já conhecia e outros que ele nunca tinha ouvido falar. Assim que pôs os pés nesta nova terra, percebeu que desse lado havia animais e muitos frutos.

Após caminhar, caçar e grelhar a caça para o seu povo, Etoare subiu na corda de volta para Kuimare e chegando lá, ele falou da sua mais nova descoberta a todos e começou a repassar os alimentos para o seu povo. Etoare então disse que todos deveriam ir para a nova terra, pois lá havia animais, frutos, água e plantas para todos.

No dia seguinte, homens e mulheres mais jovens começaram a descer pela corda, carregando suas redes e atravessando o lindo céu azul, até chegar na terra abençoada. Etoare foi o primeiro a descer, sendo seguido pelos mais jovens, mas havia um pequeno detalhe: quando uma mulher grávida tentou passar ficou presa no buraco. Até então, só os Warao jovens e magros devido à fome tinham passado pelo buraco, enquanto os idosos haviam ficado por último, incluindo Auralá.

Tentaram puxar a mulher pelo buraco, mas sem sucesso e com isso, os anciãos que ficaram para trás passaram a xingar a mulher em voz alta e de tanto praguejar, viraram “Jebus”, espíritos malignos. Um se tornou diarreia, outro sarampo e vômito e um por um foram virando doença e morte.

Os outros viraram estrelas e a mulher se tornou a Ursa maior. Esses espíritos estavam com tanta raiva que não puderam descer a terra como os outros e seguiram desejando mal aos jovens que conseguiram descer para o Orinoco.

Os Warao dizem que se todos tivessem conseguido descer, não haveria doença ou morte.

O mito Warao contado por Argenia, reflete não só na cultura do povo Warao até hoje, mas também na situação migratória desse povo, que está saindo de seu lar, para um lugar desconhecido, em busca de condições de vida melhores. No entanto, um povo rico em costumes, cultura e com um dialeto próprio, tem mais um desafio pela frente: a divergência cultural.

Chegar em outro país após andar durante dois dias sem comer, sem tomar banho e apenas sobrevivendo com água, é um dos maiores desafios que um imigrante pode ter, porém não é o único. Adaptar-se à nova realidade em um país como o Brasil, que por si só tem uma diversidade cultural gigantesca, tem seus desafios.

Mas afinal, o que é a divergência cultural? Diz respeito à existência de uma grande variedade cultural antrópica. Há vários tipos de manifestações culturais que nos revelam essa variedade, tais como: a língua, danças, vestuário, religião e outras tradições como a organização da sociedade.

A tranquilidade do Orinoco, agora não passa de uma vaga lembrança, e de volta a realidade, os Warao lidam com um ambiente selvagem e acelerado com questões sociais divergentes às quais eles conhecem.


A cultura do povo que veio do céu


O povo Warao, é um grupo étnico bastante diverso quando se trata das suas formas de organização social e costumes, além de serem um povo matriarcal e que vivem do artesanato e pesca. Compartilhando uma língua comum, também chamada de Warao, o povo originário do Delta Orinoco lá na Venezuela, traz dança, canto e uma conexão com a natureza que começa a surgir no mito de Etoare.


A língua Warao possui sete dialetos de sete diferentes regiões, é uma linguagem livre de normas e regras. O dialeto Warao vem dos ancestrais, é uma das línguas mais antigas que existem. Os antepassados Warao criaram essa linguagem própria, ou seja, ela não deriva de uma raiz.

No início dos tempos, os ancestrais não escreviam a língua, apenas agora que os Warao passaram a criar a própria escrita. Era uma linguagem apenas oral, de expressões e da natureza viva. Para os indígenas, todos eles devem falar a língua com orgulho, independente do lugar, mantendo-a sempre viva e a ensinando às novas gerações. No entanto, vem se tornando difícil para alguns Warao passar a linguagem adiante.


Para os Warao, o canto faz parte da rotina. Eles cantam quando estão na canoa, quando estão trabalhando na roça, quando estão trabalhando na roça, ou até mesmo quando estão com uma criança nos braços. Eles cantam para limpar os pensamentos. O canto é um resgate dos antepassados, muitas vezes, acompanhada pela dança, são feitas oferendas aos espíritos, e assim não haverá doenças onde eles vivem.

Os ancestrais Warao ensinaram que essas tradições devem ser respeitadas, por serem sagradas. É dever do seu povo cuidar dos espíritos, tratando-os com respeito. Eles fumam tabaco para os espíritos e comem Yuruma - um alimento muito especial para eles – mas apenas se for autorizado pelos espíritos, como oferenda. É como se eles entrassem em um transe e depois acordassem para dançar por 7 dias, e só então, se alimentar de comida tradicional.

A conexão do povo indígena Warao com a natureza é forte, e por isso sua cultura é baseada no meio ambiente em que vivem e na espiritualidade de seus ancestrais. Na dança, tanto os homens quanto as mulheres participam, principalmente na presença de Yuruma.


Antes das danças começarem, como a Jabisanuka, os Warao pedem permissão para a pedra sagrada Kanobo. Primeiro eles fazem um suco de buriti com um tipo de pão para apresentar as duas danças sagradas: Jabisanuka e Britanillo. Para respeitar a tradição, eles dançam e cantam sem instrumentos musicais.

A natureza também exerce um grande papel na alimentação dos indígenas Warao. A base alimentar deles é o pescado, tudo que for derivado das águas, ou que se colhe da terra, e mesmo longe de onde vivem, eles procuram uma base alimentar semelhante. O Warao também se baseia na natureza como cura de suas doenças, causadas por desequilíbrios espirituais e físicos. Dessa

forma, diferentes plantas, como a folha de praia e o cariaquito são utilizadas para combater os espíritos malignos, como diarreias e vômitos.

No mito de Etoare, é dito que os anciãos que não conseguiram deixar Kuimare e praguejavam contra a mulher grávida que ficou presa no buraco, viraram espíritos malignos. No entanto, na concepção deles, essas doenças são maldições e sem fé, não há cura.


A origem do povo e da cultura Warao entra em conflito com a cultura dos países que eles se refugiam, como o Brasil, que é um país com uma cultura diversa. Diante disso, o povo Warao que já vem de uma longa e sofrida jornada, enfrenta mais um desafio: a xenofobia.

Mudanças e adaptações em um novo lar


Após dois dias andando no sem comer, sem tomar banho e sobrevivendo de água, os migrantes Warao chegaram na fronteira brasileira, porém ao invés de se depararem com um ambiente próximo aos quais eles já estavam habituados, encontraram um novo mundo mais acelerado e diversificado, onde em um só lugar você encontra mais de uma religião, cultura e histórias. Refugiados da escassez, da fome e da miséria, os Warao entram em um país onde a fartura se mistura com a miséria.

A antropóloga, Sandreana Melo, pontua que coisas básicas do dia a dia do alagoano, causam grande impacto no povo Warao - como a comida, a bebida, o banho e os objetivos sociais de cada um.

Apesar de ter muito o que estudar sobre os Warao em Alagoas, é possível perceber que estão maravilhados com os prazeres desse novo lugar. Além do consumo de refrigerante em excesso, os indígenas não economizam ao comprar roupa, mas também não são apegados a bens materiais, e o que recebem tanto das coletas, como do Auxílio Brasil, mandam para os familiares que ainda não conseguiram deixar a Venezuela.


Apesar de encararem a coleta com seriedade e não terem vergonha de fazerem o que é necessário para sobreviver, é notório que eles ainda não adaptaram sua cultura à nova realidade. Argenis - é pescador e aqui sente falta pesca -, de ir com seus companheiros em uma canoa e passar o dia pescando. Há uma iniciativa da prefeitura em relação à pesca. Uma canoa foi alugada com o propósito de incentivar a atividade da pesca para o povo Warao, mas segundo os indígenas a rede de pesca ainda não está pronta por falta de linha.

Warao durante a coleta no centro de Vitória, ES. Foto: Geraldo Nascimento

A antropóloga, diz que as mulheres já fazem suas joias artesanais com miçangas que recebem do município e pede ajuda no incentivo, divulgação e comercialização desse artesanato, para começarem a movimentar economia deles.


Outra coisa que chama atenção é em relação a crença. Já que para os Warao, as doenças são representadas pelos Jebus, espíritos malignos, quando um deles adoece, a tendência é recusar o tratamento convencional, pois para eles a doença, na verdade é uma maldição lançada e por isso buscam recursos naturais, que em sua terra natal seria possível obter, no entanto em meio a cidade grande se torna difícil.

A falta de um pajé para orientar com conhecimento na ciência e nas crenças indígenas, muitos deles recusam tratamento e muitas vezes encaram um alerta ou aviso sobre a saúde, como maldição.

Tem partes muito enraizadas da cultura e costumes Warao que choca com os costumes culturais alagoanos, no entanto há outros aspectos que precisam de uma atenção e uma preservação maior.

A preservação e a manutenção da cultura Warao em Alagoas


Argenis,- tem 24 anos e começou a migrar para lugares mais capitalizados muito jovem, ainda na Venezuela. Estando há quase três anos no Brasil, o Warao afirma que já esqueceu de grande parte da sua cultura e se preocupa com os filhos, que já falam o português melhor que o espanhol. Mas não é só a língua que o Warao sente falta. As danças e cantos deixam um buraco de saudade no coração do indígena.


É por meio da cultura que podemos conhecer a história de um povo e tudo o que a envolve. Por exemplo, a arte, as tradições, a dança, o canto, a língua e os saberes de um determinado povo. Preservar e valorizar os elementos culturais de um povo, é manter viva a sua identidade. Trata-se, portanto, de um ato de construção da cidadania.

Apesar de terem acesso ao artesanato, as danças e o canto ainda não foram adaptados à nova realidade. Os Warao querem garantir que as próximas gerações cresçam sabendo sobre a história de seu povo. Esse conhecimento é aplicado no dia a dia e na rotina de cada indígena, que mantém a memória viva.



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